Saudades da inflação?

Para quem lembra, para quem esqueceu, para quem era muito pequeno ou para quem ainda não havia chegado, vale muito a leitura do livro da Miriam Leitão, Saga Brasileira. Sendo um excelente material jornalístico, de fatos conhecidos e de bastidores, é também um registro histórico, de um passado recente que todos vivenciamos, uns por mais tempo, outros por menos, uma vez que o trabalho abrange um bom período dos anos 80 e chega até os nossos dias. Alguns fatos são tão fantásticos que às vezes soam como inverossímeis, como no período de hiperinflação, em que o preço de um produto de manhã não era o mesmo na parte da tarde. Em que diariamente tínhamos que ir até o banco para ver qual o novo saldo, com a ilusão de que ele havia crescido, quando na realidade, era corroído a cada momento. A euforia do plano cruzado, os fiscais do Sarney, a elevação do consumo, a falta de produto, os ágios, a volta galopante da inflação, a moratória acompanhada do discurso nacionalista de Funaro. Os planos que seguiram e que fracassaram, e em especial o plano Collor, que como Miriam ilustra bem, foi responsável (ou seria irresponsável?) por várias tragédias familiares, incluindo perdas de vidas ou de impactos sobre vidas que jamais seriam as mesmas. Lembrei das tabelas, tablitas, congelamentos, conversões em índices dos mais variados da URV, uma moeda que não era moeda e com a qual aprendemos a converter os preços, dividindo-os pelo número enigmático de CR$2.750 e que precedeu finalmente o real. Como mídia, foi o período áureo dos jornais. Ninguém sabia o preço de nada e os anúncios de varejo eram notícias das mais relevantes. Além disso, eram documentos, servindo de prova, de garantia de que seria vendido por este preço, pelo menos naquele dia, ou enquanto durasse o estoque. Não foram raros os casos em que um erro de composição do anúncio, com algum zero a menos, por exemplo, gerasse uma verdadeira confusão nas lojas, com centenas de consumidores armados com o seu jornal a exigir o cumprimento do que estava escrito. O jornal trazia o tripé imbatível: informação (qual o preço), percepção de que era barato (se estava em destaque devia ser) e sentido de urgência (corra porque o preço vai aumentar). Era nos jornais de domingo que os consumidores faziam shopping, passeando pelas páginas anúncios (vitrines) e comparando os preços. Nas segundas-feiras era comum as lojas terem que abrir mais cedo e já com filas de consumidores tensos, dispostos a lutar pelos seus direitos. Uma verdadeira guerra. A cultura era a da escassez. Mesmo para os bem intencionados, a ordem era de, para se defender, tentar levar vantagem (no que fosse possível, pois as perdas eram certas). Tudo isso favorecia a mídia jornal, uma fonte diária de serviços para o consumidor e o maior canal de vendas para o varejo, muito mais pulverizado do que hoje, com forte concorrência entre as redes locais, o que beneficiava ainda mais o meio jornal. A estabilidade mudou o país, mudou a nossa cabeça como cidadãos e como consumidores. O fator tempo e a tecnologia mudaram a maneira de absorvermos informação. Também mudou a forma de fazer e de vender publicidade. A audiência e as verbas de mídia estão mais pulverizadas e disputadas. Para os profissionais de venda de mídia impressa, o mundo parece mais difícil. Mas é apenas uma ilusão. Não dá para ter saudades da inflação. Como povo e como indivíduos, duro mesmo foi chegar até aqui, domando o dragão que parecia invencível (ele ainda está vivo, preso, mas alimentado e lutando para voltar), e que nos condenava a uma eterna luta pela simples sobrevivência. Não dá para ter saudades, mesmo sendo mais difícil vender jornais.

(Junho, 2011)